Cármen Lúcia vota pela suspensão da produção pelo MJ de informações sobre antifascistas

Ministra é relatora de ação no STF contra produção pelo Ministério da Justiça de dossiê com informações de quase 600 servidores identificados como antifascistas e opositores do governo. A ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou nesta quarta-feira (19) a favor da suspensão “todo e qualquer ato do Ministério da Justiça de produção ou compartilhamento de informações sobre a vida pessoal, escolhas pessoais e políticas, práticas cívicas dos cidadãos, servidores públicos identificados como integrantes de movimento político antifascista”.
A ministra é relatora da ação do partido Rede Sustentabilidade que pede a suspensão imediata da produção, pelo Ministério da Justiça, de um relatório sigiloso, suposto dossiê contendo informações de quase 600 servidores públicos, a grande maioria ligada a movimentos antifascistas opositores do governo.
Os demais ministros ainda não tinham apresentado seus votos até a última atualização desta reportagem. No início do julgamento, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria Geral da República pediram a rejeição da ação.
Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia afirmou que a ação se justifica. “Não é dito: ‘Não é dossiê, não há relatório'”.
“Como ele [ministro da Justiça, André Mendonça] não disse que não existe relatório, ele reclama do Supremo um salto de fé”, disse a relatora.
“Se não há dossiê, do que estamos falando em matéria administrativa, que levou até a afastamento de servidor?”, argumentou a ministra, em referência ao afastamento do diretor responsável pelo setor que produziu o relatório.
A ministra afirmou que recebeu do ministro da Justiça uma nota explicativa sobre o relatório e que, nessa nota, Mendonça afirmou que não solicitou qualquer relatório e só teve conhecimento da existência do documento pela imprensa.
“Benza Deus a imprensa livre do meu país, benza Deus que temos ainda Judiciário que tem conhecimento disso e que dá importância devida para a garantia da democracia no sentido de a gente verificar do que se trata, do que é e qual a resposta constitucional a ser dada”, disse a ministra.
Ela lembrou ainda que Mendonça chegou a dizer à Corte que o Judiciário não deveria ter acesso às informações e defendeu que o cidadão “tem pleno direito, inexpugnável, de contrapor-se a eventual ação secreta do Estado sobre a sua vida particular ou a sua vida política”.
Para a ministra, “o proceder de dossiês, pastas, relatórios, informes sobre a vida pessoal dos cidadãos brasileiros não é nova no nosso país e não é menos triste termos que voltar a esse assunto quando já se acreditava que era uma face mais negra da nossa história”.
“A República não admite catacumbas, a democracia não se compadece com segredos”, afirmou.
“Ninguém está a cogitar que não seja possível o não cumprimento da lei, qualquer que seja o órgão.”
A ministra questionou ainda o argumento de que os dados seriam usados em atividade de inteligência.
“O serviço de inteligência é necessário. Não é isso que está em questionamento. O uso ou abuso da máquina estatal caracteriza, sim, desvio de finalidade, pelo menos em tese.”
Segundo ela, o Estado não pode ser “detrator, menos ainda em afronta a direitos fundamentais, que é sua função garantir e proteger. O estado tem o dever de impedir ameaça ou lesão a direito”, declarou.
Sustentações orais
O advogado-geral da União, José Levi Mello, pediu que a liminar seja negada.
“A União rejeita toda e qualquer forma de autoritarismo ou totalitarismo, aí incluído o fascismo”, afirmou Levi, para quem a atividade de inteligência deve respeitar o interesse público (veja no vídeo abaixo).
José Levi: ‘A União rejeita toda e qualquer forma de autoritarismo ou totalitarismo’
José Levi negou que o ministro da Justiça, André Mendonça, tenha se recusado a entregar o relatório ao STF, afirmando que não houve pedido expresso e que “não há sigilo oponível ao Supremo”.
Segundo José Levi, o sigilo das informações coletadas, no entanto, serve para proteger autoridades e cidadãos em ambiente de análise “informativo, e não investigativo” e que a atividade de inteligência deve continuar respeitando premissas já definidas pelo STF. “Não há dados para além de dados de alcance público”, disse.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que “o Ministério Público não admite governos que espionem opositores políticos”, mas que teve acesso ao relatório de inteligência e afirmou que ele não reúne dados com fins investigatórios. “Relatório de inteligência não se confunde com investigação criminal”, afirmou.
Aras argumentou que “a finalidade da inteligência é antecipar evento que pode colocar em risco a sociedade”.
“Concluímos que os chamados relatórios de inteligência representam uma compilação de dados extraídos de fontes abertas — Instagram, Facebook, YouTube —, atividade que poderia ser realizada por qualquer cidadão na rede mundial de computadores”, afirmou. “ados não eram invasivos à privacidade de brasileiros.”
Segundo ele, isso é diferente da investigação criminal, cujo objetivo é coletar dados acerca da materialidade e autoria de crimes.
“No caso vertente, as informações obtidas pelo PGR foram coletadas na atividade típica de inteligência, não atividade de índole investigativa de natureza inquisitorial”, afirmou.
Primeiro a apresentar sua manifestação, o advogado da Rede, Bruno Lunardi Gonçalves, disse que há “nítido desvio de finalidade” na produção de dossiê. “Qual outra voz dissidente será cerceada?”
Em seguida, o advogado Gabriel de Carvalho Sampaio, da Conectas, interessada na ação, defendeu que “causa espécie que neste momento tenhamos que discutir a criminalização do antifascismo”.
Entenda o caso
Na ação, a Rede pede ao STF a “imediata suspensão da produção e disseminação de conhecimentos e informações de inteligência estatal produzidos sobre integrantes do ‘movimento antifascismo’ e professores universitários”.
A ação também pede a abertura de inquérito pela Polícia Federal “para apurar eventual prática de crime por parte do ministro da Justiça e Segurança Pública e de seus subordinados”, além da remessa dos conteúdos já produzidos ao STF para análise, com a manutenção provisória do sigilo.
Na semana passada, a ministra pediu informações ao Ministério da Justiça, que não confirmou nem negou a existência do dossiê. Em documento encaminhado ao STF, no qual não incluiu o relatório, o MJ afirmou que não coleta informações com intuito investigativo e que isso difere de atividade de inteligência.
Cármen Lúcia afirmou que, se a “gravidade do quadro descrito se comprovar, “escancara comportamento incompatível com os mais basilares princípios democráticos do Estado de Direito e que põem em risco a rigorosa e intransponível observância dos preceitos fundamentais da Constituição da República”.
Em voto proferido no julgamento sobre fornecimento de dados à Agência Brasileira de Inteligência (Abin), Cármen Lúcia já ressaltou que “arapongagem” (investigação clandestina) é crime e, quando praticada pelo Estado, “é ilícito gravíssimo”.
A existência do relatório foi revelada pelo portal UOL. Segundo a reportagem, “o Ministério da Justiça colocou em prática, em junho, uma ação sigilosa sobre um grupo de 579 servidores federais e estaduais de segurança identificados como integrantes do ‘movimento antifascismo’ e três professores universitários”.
Ainda conforme a reportagem, a pasta “produziu um dossiê com nomes e, em alguns casos, fotografias e endereços de redes sociais das pessoas monitoradas”. O relatório foi feito pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi), ligada ao ministério.
Após a revelação da existência do documento, ministro da Justiça, André Mendonça, determinou a abertura de uma sindicância para apurar as circunstâncias da elaboração do relatório. Ele também substituiu o então diretor do órgão, Gilson Liborio.
No último dia 11, o suposto dossiê foi entregue à Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso Nacional. O presidente da comissão, senador Nelsinho Trad (PSD-MS), disse que assinou um termo de confidencialidade e que entregaria o relatório aos demais membros da comissão.
Na segunda, o ministério anunciou a entrega do material ao STF e à Procuradoria-Geral da República. Na terça, a ministra Cármen Lúcia determinou o envio do material as demais ministros da Corte.

By Fred Souza

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