Moradores de União da Vitória enfrentam nível mais baixo da história do Rio Iguaçu, após sofrerem com enchentes durante a vida: ‘Extremos que prejudicam’


Pior estiagem registrada no Paraná fez com que nível do Rio Iguaçu chegasse a 1,29 metro – o menor desde 1931, quando o monitoramento foi iniciado pelo Simepar. União da Vitória na enchente de 1983 e, ao lado, o Rio Iguaçu em maio de 2020
Arquivo/Prefeitura de União da Vitória/Aline Gasnhar
Em cima da terra rachada, o olhar atento ao céu na espera de dias melhores. Moradores de União da Vitória, no sul do Paraná, enfrentam o nível mais baixo da história do Rio Iguaçu – após vivenciarem, por anos, as maiores enchentes da cidade.
O recorde, conforme o Sistema de Tecnologia e Monitoramento Ambiental do Paraná (Simepar), foi registrado em maio quando o rio atingiu 1,29 metro, sendo que esperado para o período era de 1,98 metro.
É a pior seca do rio desde 1931 – quando o monitoramento foi iniciado.
A população da cidade tem histórias marcadas pela água que, rápida e insistente, levou muitas vezes além de objetos, também alguns sonhos.
“Não é que a gente se acostuma com abundância da água, mas a gente vê que pessoas acabam desistindo de muitas coisas depois da enchente, perde emprego, deixa de estudar, infelizmente é assim. Esse ano não choveu aqui, só garoa. Foi bem atípico. São extremos que prejudicam muito”, diz Maria Regina Martins Gelchaki.
A série de reportagens “A Gota d’Água” – uma parceria do G1 com o Boa Noite Paraná – aborda a maior seca registrada na história do estado e as consequências para a população e o meio ambiente.
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Menor nível do Iguaçu
O Rio Iguaçu é monitorado continuamente há quase 90 anos. Na primeira quinzena de maio de 2020, o nível do rio, em União da Vitória, ficou em menos de um metro e meio, de acordo com Arlan Scortegagna Almeida, engenheiro sanitarista e ambiental do Sistema de Tecnologia e Monitoramento Ambiental do Paraná (Simepar).
Almeida explica que os baixos níveis registrados neste ano resultaram na pior seca da série histórica. Antes disso, anos de seca no Alto Iguaçu ocorreram em 1985/1986, 1963 e 2006, mas nenhuma foi tão severa quanto em 2020.
“Temos uma estação de medição de nível e vazão que registra o comportamento do rio”, comentou.
Dores da enchente
Maria Regina mora em União da Vitória há quase 50 anos e, vendo a situação atual do rio, conta que é inevitável não relembrar tudo o que passou por causa dele. A moradora presenciou, em 1983, a considerada pior enchente da cidade e também outras duas grandes que ocorreram em 1992 e 2014.
Ela conta que, na manhã que antecedeu a tragédia em 83, foi trabalhar com o pai de bicicleta e os dois ouviram um apito do trem, mas, mesmo com a chuva forte, não pensaram que se agravaria. O sinal do trem era para alertar o povo que a água do rio estava subindo.
Enchente em União da Vitória, no sul do Paraná, em 1983
Horas depois, a família ligava na empresa para que Maria Regina e o pai voltassem para ajudar a salvar algumas coisas, mas eles não foram, afinal, a casa não ficava próxima ao rio.
Durante a tarde, o responsável pela empresa retornou falando sobre o desespero da irmã, e eles resolveram voltar para casa.
“A gente ‘se mandou’ de bicicleta pela ponte de ferro, dava uns 10 km de distância. Lá de cima já se via a cidade debaixo d’água. Saímos com a roupa do corpo, os documentos e uma sacola com comida. Minha mãe doente teve que ser resgatada com um trator. Foi difícil olhar para trás e deixar tudo. Não era grande coisa, mas era o que a gente tinha”, disse.
Cidade fantasma
Enchente na cidade, em 1983
Arquivo/Prefeitura de União da Vitória
Foi mais de um mês fora de casa até que o rio abaixasse. A família se alojou em um pavilhão com outras 30 famílias e apenas dois fogões. As doações de cobertores e roupas demoraram a chegar e, conforme Maria Regina, por ser um bairro afastado “só chegou o resto do resto”.
“A gente teve que usar até calçado com um par diferente do outro, fomos comprando as coisas de novo aos poucos. Foi surreal viver assim. Depois que voltamos para casa foi um susto ver aquela destruição, um cheiro horrível. Tudo manchado, bagunçado, a casa rangia, as portas não fechavam. Parecia uma cidade fantasma”, comentou.
Maria Regina mora em União da Vitória há quase 50 anos; foto de 2020
Arquivo pessoal/Maria Regina Martins Gelchaki
‘Só ficou a cunheira da casa’
Luíza Helena da Silva Marins vive em União da Vitória desde bebê. Ela conta que nunca pensou que, aos 68 anos, veria uma transformação tão grande do rio com que sempre conviveu.
Ela também passou pela enchente enorme de 1983 e, apesar de ter perdido tudo na época, mora hoje no mesmo terreno.
“Foi muito agressiva. Só ficou a cunheira da casa, saímos com a roupa do corpo, perdemos tudo, mas passou. As outras [enchentes] foram ruins, mas controladas até. É uma coisa que a gente nunca esquece. Moramos na mesma casa hoje, só que construímos um sobrado”, disse Luíza.
União da Vitória é caracterizada por fortes enchentes, que cobriram boa parte da cidade
Arquivo pessoal/Luíza Helena/Edegar Gasnhar
Em 83, a casa em que ela morava era de madeira. Depois, o marido construiu uma casa de dois andares, pensando nas possíveis enchentes que viriam. E elas vieram. Em 2014, a família precisou levar todos os móveis para o segundo andar por causa do avanço da água.
“Levamos tudo para cima e entrávamos com bote até na escada. No primeiro andar ficaram uns 80 cm dentro de casa de água. É muito sofrido, mas não temos mais medo. Nós sempre agradecemos por estar aqui e ter onde morar”, disse.
Luíza e o marido moram no mesmo terreno da enchente de 1983, mas construíram um sobrado; foto de 2020
Arquivo pessoal/Luíza Helena da Silva Marins
Mudança para a cidade-irmã
Edegar Gasnhar morou em União da Vitória e precisou ficar quatro meses fora de casa por causa da enchente de 1983. Depois do trauma, pegou o pouco que restou e foi morar em Porto União (SC) – cidade que faz limite com União da Vitória por meio de uma linha férrea e também pelo Rio Iguaçu.
Por trabalhar no Paraná, Edegar não podia ir muito longe dali. Porém, dessa vez, ele escolheu um local mais alto e longe do rio para evitar possíveis problemas com a água.
“Para entrar água em casa precisava subir 7,5 metros e subiu mais de 11 metros. Chovia de balde. Você perde muita coisa, faz mudança, volta, reforça, perde. Era uma tortura. Hoje, a gente sofre pelos outros, não querer que eles passem pelo que a gente passou”, comenta ele.
As indústrias, principalmente do ramo madeireiro, tiveram muitas perdas por causa da água
Arquivo pessoal/Edegar Gasnhar
Conforme Edegar, nessa época, alguns moradores moraram em vagões da rede ferroviária. As indústrias grandes, principalmente do ramo madeireiro, tiveram muitas perdas.
“Muita gente não tem para onde se mudar, acaba voltando e pega enchente de novo. Aquilo deixa o psicológico bem abalado”, relembrou.
Impacto da estiagem severa
De acordo com a Prefeitura de União da Vitória, na cidade que passou por tantas situações difíceis, de reconstrução por anos, em 2020 ocorreu o inesperado: a seca do Rio Iguaçu.
O monitoramento dele é realizado em conjunto pela Companhia Paranaense de Energia (Copel), Simepar e Instituto Água e Terra (IAT).
“A cidade nunca tinha visto uma seca tão intensa. Até em momento crítico de pandemia, onde as pessoas tinham que ficar em isolamento domiciliar, o Rio Iguaçu foi meio que um ponto turístico, as pessoas se reuniam para ver o quão baixo ele estava nesse período”, comentou o prefeito Santin Roveda.
Pessoas se reuniam para ver o quão baixo o Rio Iguaçu ficou
Divulgação/Prefeitura de União da Vitória
Conforme a prefeitura, este foi, na verdade, um dos “problemas” da seca para a região, uma vez que não houve racionamento de água. “As pessoas começaram a economizar muita água, e foi um ponto positivo para que não tivesse a necessidade de uma atitude drástica”.
Maria Regina e Luíza que moram, em União da Vitória, contaram que, como não chegou a faltar água na cidade, ruim mesmo foram a poeira e a dificuldade para respirar pelo período longo sem chuva.
Edegar, que mora do outro lado do Rio Iguaçu, disse que em maio chegou a caminhar até a metade do rio.
“Entrei no rio e não me molhei”, brincou. “Só tinha um filete de água passando por baixo da ponte. O rio tem mesmo seus altos e baixos, mas seco assim nunca tinha ficado. Para nós, é até melhor mais seco, mas não precisava ser tanto”, disse Edegar.
Edegar, que mora do outro lado do Rio Iguaçu, disse que em maio foi até a metade do rio a pé
Arquivo pessoal/Edegar Gasnhar
O engenheiro sanitarista e ambiental, Arlan Scortegagna Almeida, afirma que apesar de União da Vitória ser caracterizada pelas grandes enchentes de 1983, 1992 e 2014, não há nada de anormal nesse processo de extremos.
“O rio passa por períodos de vazões altas que causam as enchentes e períodos de baixa vazão que causam as secas. Esse é o comportamento da natureza, é inevitável. Esses eventos extremos têm menor probabilidade de ocorrer, mas infelizmente acontecem”, explicou Almeida.
Apesar de tudo, de tantas perdas e readequações, as pessoas que vivem na região, tanto em União da Vitória quanto em Porto União, dizem se sentir completas e felizes. Segundo eles, é exatamente nesse chão que criaram as raízes, mesmo que algumas vezes esse solo tenha sido regado demais ou de menos.
“Nós gostamos da cidade, do nosso cantinho. Hoje estar bem em União é, de fato, uma vitória, mesmo vendo essa seca agora. Cada etapa foi uma página da nossa história, e também da história desse chão”, completou Luíza.
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By Fred Souza

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